Tigrinho, cassino, bingo: saiba os impactos sociais dos jogos de azar

Vício no Jogo do Tigrinho, jogo do bicho, cassino, bingo. Apesar de existir há séculos, entre as mais diversas culturas, os jogos de azar até hoje seduzem milhares de pessoas por meio da diversão combinada à sorte, bem como ao prazer associado às probabilidades do “ganhar”.

A recente aprovação pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado de um projeto de lei que autoriza a prática de jogos de aposta promete não apenas transformar o cenário do entretenimento e da economia nacional.

Também levanta sérias preocupações em relação aos impactos sociais e individuais que essas atividades podem acarretar.

Do Jogo do Tigrinho a “medidas extremas”
Ariele Neves, de 32 anos, assistente fiscal, descobriu, por meio de perfis de influencers, jogos de apostas que prometiam retorno de muito dinheiro. Primeiro, ela apostou R$ 50, mas perdeu. Frustrada, tentou novamente, apostando a mesma quantia. Dessa vez, ganhou R$ 150 e se empolgou.

A partir disso, Ariele passou a viver um ciclo vicioso: quanto mais ganhava, mais queria apostar. Quanto mais perdia, apostava ainda mais para se recuperar.

Em determinado momento, o dinheiro dela acabou e ela decidiu recorrer à mãe, que trabalha de empregada doméstica.

“Fiz transferências via Pix para mim mesma de valores como R$ 100 e R$ 200. Em pouco tempo, tinha gastado cerca de R$ 500 dela em apostas. Desesperada para recuperar o dinheiro antes que ela percebesse, comecei a ter crises de ansiedade, sem saber como resolver a situação”, conta Ariele.

A mulher conta que a pressão foi tanta que ela pensou em medidas extremas porque sentia-se “incapaz de devolver o dinheiro”. “Minha mãe é empregada doméstica e não ganha muito. Saber que peguei o dinheiro dela me destruiu emocionalmente.”

Ao saber da situação, a mãe interveio e ajudou Ariele a pagar as dívidas. Quando questionada se hoje em dia se considera livre do vício, a assistente fiscal afirma que é “difícil dizer”.

“Às vezes, sinto vontade de jogar novamente. Tive recaídas, como sempre, e ainda estou endividada por causa disso. Bloqueei todas as plataformas e tento evitar qualquer coisa relacionada a apostas, mas ainda tenho medo de voltar a jogar”, desabafa.

“A adrenalina de tentar ganhar mas perder me fez continuar jogando”
A maquiadora Jackeline Barbosa, de 25 anos, começou a apostar em jogos de azar on-line com pequenos valores, entre R$ 10 e R$ 20. Deslumbrou-se após ganhar R$ 2 mil em uma semana.

“A partir daí, comecei a perder o controle. Apostava mais e mais. Quando perdia, dobrava a aposta: de R$ 50 para R$ 100, depois para R$ 200, até chegar a apostar R$ 600. Então, passei a perder. Perdi todo o dinheiro que tinha guardado na conta, cerca de R$ 1.500”, conta.

Passou a comprometer a reserva destinada a um terreno para a construção da casa de sua família. Escondendo a situação do marido, Jackeline acumulou uma dívida de mais de R$ 20 mil.

“Todo dinheiro que ele me dava para pagar o terreno, eu usava para apostar, na esperança de ganhar mais e mais, só que eu sempre perdia. A adrenalina de tentar ganhar e perder me fez continuar jogando, sempre com a esperança de recuperar o que eu já tinha perdido”, relata.

Ela decidiu contar para o marido. “Quase nos separamos. Estávamos endividados, com meu nome sujo. Aos poucos, conseguimos resolver a situação”, revela.

Jogo patológico
A prática dos jogos de azar pode conduzir indivíduos a sérios problemas psicológicos e sociais, assumindo a forma de um distúrbio conhecido como jogo patológico. Esse transtorno se caracteriza pela persistência no comportamento de jogar, mesmo diante das consequências que acarreta.

Fisicamente, pode levar a problemas como depressão, ansiedade, alcoolismo e tabagismo, ampliando as dependências. Psicologicamente, causa sentimentos intensos de culpa, tristeza e vergonha, agravando o ciclo do vício. Socialmente, pode resultar em conflitos familiares, separações, perda de amizades, desemprego e até envolvimento em atividades ilegais, prejudicando relações pessoais e profissionais.

No Brasil, o transtorno do jogo é uma das dependências mais comuns, afetando aproximadamente 1% da população.

Entre aqueles com esse transtorno, há uma alta prevalência de problemas relacionados ao álcool (73,2%), dependência de nicotina (60,4%), e uso de outras drogas (38,1%). Além disso, muitos também enfrentam transtornos de humor (49,6%), ansiedade (41,3%) e personalidade (60,8%).

Globalmente, a prevalência do transtorno varia de 0,4% a 2,1%, sendo reconhecido como uma doença pela OMS desde 1980.

Segundo Juliana Gebrim, psicóloga e neuropsicóloga, “os jogos de azar frequentemente se tornam uma forma de escapismo, usados para fugir de problemas ou aliviar sentimentos negativos como ansiedade e depressão.”

Ela destaca que “mentiras e ocultação sobre a extensão do envolvimento com jogos de azar são comuns, com um comprometimento significativo das relações pessoais e responsabilidades profissionais, levando ao afastamento de amigos e familiares e à negligência de obrigações.”

“O jogador compulsivo pode se afastar de amigos e familiares, levando ao isolamento social e à perda de apoio emocional. Além disso, a tensão financeira resultante do jogo excessivo também pode causar conflitos familiares significativos, contribuindo para um ambiente doméstico estressante e disfuncional.”

Tratamento para o vício
Apesar da situação do vício ser desesperadora, nem tudo está perdido. De acordo com Juliana, é possível tratar o vício em jogos com terapia: “Uma das estratégias muito utilizadas é a terapia cognitivo-comportamental (TCC), que ajuda muito a identificar e mudar padrões de pensamento e comportamento negativos relacionados ao jogo.”

Há também a possibilidade de se associar a grupos de apoio, como os Jogadores Anônimos, que proporcionam um suporte e um espaço seguro para a pessoa compartilhar experiências. “Quando necessário, é indicado o uso de medicação que será prescrita por psiquiatra para tratar sintomas de comorbidades como depressão ou ansiedade.”, explica.

Aprovação dos jogos de azar na CCJ
A Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado aprovou, em votação apertada, o projeto que libera cassinos e jogos de azar no país. Foram 14 votos favoráveis e 12 contrários.

O texto, criticado pela oposição e que foi alvo de protestos no Senado, ficou semanas sem ser votado na comissão por causa das divergências. O projeto não tem boa aceitação entre setores religiosos do Parlamento.

A proposta permite a instalação de cassinos em polos turísticos ou complexos de lazer, como hotéis de luxo de pelo menos 100 quartos, resorts, restaurantes e bares, por exemplo, cada modalidade com normas próprias.

O texto ainda precisa passar pelo Plenário e pela sanção do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que pode optar por vetar trechos ou mesmo a proposta inteira.

Metrópoles

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