Leticia Albuquerque

Especialista em ler e em leis.

Instagram: @adv.leticia.albuquerque

O mundo é um moinho

Seu Angenor de Oliveira era pedreiro e também fazia vários bicos aqui e ali para complementar a renda. Muitas vezes faltava o essencial. Morava num casebre de uma comunidade muito pobre e dominada pelas milícias. Rosário da Vitória de Oliveira Moura era sua filha. Só eram eles dois, pois a mãe de Rosário fora vítima de uma peste desconhecida.

O casebre em que moravam consistia em um quarto, um banheiro, uma cozinha precária apenas com uma pia e um fogão velho e uma ‘’sala’’, um pequeno espaço em que havia um varal de roupas e onde Rosário guardava uma pilha de livros. Ela era apaixonada por livros, principalmente sobre o sertão nordestino, lugar onde sua mãe nasceu e de onde saiu fugindo da fome. Lia obras de autores como José Lins do Rêgo, João Cabral de Melo Neto e José Américo de Almeida. Também tinha algumas gramáticas em inglês e ela insistia em aprender sozinha o idioma, lendo e ouvindo músicas estrangeiras na radiola do pai.

Não havia janelas no casebre. Não entrava luz do sol, então não tinham plantas. No quarto só havia uma cama para os dois. Não fazia muita diferença pois Seu Angenor quase sempre dormia embriagado nas ruelas da comunidade, deixando a cama para a filha.

Durante o dia seu Angenor era trabalhador para sobreviver, à noite ia para a boemia viver. Sentava à mesa do bar com sua viola e começava a entoar canções sobre as coisas da vida, umas mais melancólicas, outras sobre os carnavais, trazendo um ar saudoso para quem ouvisse. Tão logo, ao redor da mesa estavam seus colegas pedreiros, seus conhecidos do morro e também doutores da sociedade que frequentavam o lugar. Seu Angenor, no fundo, amava a noite da boemia e só saia de lá na alvorada, cantando: “Alvorada lá no morro, que beleza. Ninguém chora, não há tristeza. Ninguém sente dissabor. O sol colorindo, é tão lindo, é tão lindo. E a natureza sorrindo, tingindo, tingindo’’. Bêbado, caía no chão, em qualquer lugar, e dormia.

O primeiro dever de Rosário ao acordar era procurar seu pai em alguma ruela e levá-lo para casa. Deixava o café e o cuscuz prontos para quando ele acordasse, por isso sempre chegava atrasada na escola. A relação entre Seu Angenor e Rosário era de respeito, porém fria, pouco se falavam. Rosário ensinou o pai, que era analfabeto, a escrever seu próprio nome, e lia para ele alguns trechos de seus livros favoritos. Mas Seu Angenor ainda preferia a viola que aprendeu a tocar com o pai, e suas composições decoradas.

A verdade é que Rosário já estava cansada de procurar seu pai bêbado pelas becos do morro, estava cansada da violência da comunidade, do casebre sem luz solar, da falta de oportunidade de progredir. Despediu de seu pai, disse que queria ganhar a vida e não aguentava mais as condições em que viviam. Após a saída de Rosário, Seu Angenor logo começou a entoar: “Ainda é cedo, amor. Mal começastes a conhecer a vida. Já anuncias a hora de partida. Sem saber mesmo o rumo que irás tomar’’.

Aos 16 anos, Rosário juntou suas roupas e livros numa mala, e com o único trocado que tinha, pegou um bonde, indo morar com uma amiga numa comunidade bem distante. Rosário começou a trabalhar como garçonete em um boteco. Ela sempre chamava atenção dos homens, pois ainda em tenra idade já tinha seios fartos, era morena, tinha olhos expressivos e sorriso infantil. Então Rosário desde cedo atraía muitos amores, mas não se apaixonava por nenhum.

Após um período trabalhando como garçonete, ela foi convidada para ser dançarina em outro boteco, passando a ser conhecida por Rosa Moura e também sobrevivia sendo dama de companhia de velhos beberrões, porém ricos. E, assim, conseguiu morar sozinha em um apartamento, em um lugar melhor.

Ao saber do rumo de sua filha, Seu Agenor se refugiou nas canções, e mais uma estrofe nascia: ‘’ Presta atenção, querida. Embora eu saiba que estás resolvida, em cada esquina cai um pouco tua vida. Em pouco tempo não serás mais o que és’’.

Seu Angenor continuava com a mesma rotina, só que agora sendo acordado pelos vizinhos do beco onde morava. Pensava na filha com saudade, lamentava seu destino. A moça que há pouco tempo queria ser enfermeira para cuidar das pessoas, agora era dama da noite. “Ouça-me bem, amor. Preste atenção, o mundo é um moinho. Vai triturar teus sonhos tão mesquinhos. Vai reduzir as ilusões a pó,’’ cantava sozinho no café da manhã amargo que agora era feito por ele mesmo.

Em uma das noitadas, Rosário, ou Rosa Moura, encontrou um rapaz desacordado em uma das avenidas em que ela andava para chegar até o apartamento em que morava. Aquele rosto não era desconhecido. Ela então se aproximou e lembrou que se tratava do primo de uma amiga da época da escola, a quem foi apresentada há seis anos e nunca esquecera, o nome dele era Emanuel. Assim que o reconheceu, o levantou e levou para seu apartamento, como no passado fazia com o pai. Emanuel estava sob efeito das substâncias.

O dia amanheceu e ao abrir os olhos, ele estranhou o lugar em que estava, mas reconheceu Rosário: “Rosário?” Ele sempre lembrava dela, pela tranquilidade que transmitia e pela beleza. E ela sempre lembrava dele quando ouvia falar em “Olhai os lírios dos campos’’, de Érico Veríssimo, porque é seu livro preferido e ele também era amante dos livros. Ela lembrava que ele afirmava querer ser médico em algum Postinho, que não queria ser rico, só ter o essencial. Ele conseguiu! Rosário ficou muito feliz ao saber que alguém de uma comunidade pobre havia se formado, e passou a admirá-lo mais ainda.

Enquanto Rosário preparava o café da manhã dos dois, Emanuel tomava banho, e depois ficou analisando os livros dela. O apartamento era pequeno mas aconchegante, tinha janelas, luz solar, plantas e o gato Goldo. Também tinha mais livros do que roupas e louças, porque Rosário era viciada em sebos, e seu hobby era a literatura. Eles conversaram a manhã inteira, lembrando dos perrengues do passado e falando sobre livros. Ele contou sobre a vida de estudante de medicina, ela contou sobre sua vida boêmia e sobre seus vários amores. Em um momento de silêncio, olharam um para o outro por trinta segundos, se beijaram e se amaram.

Rosário e Emanuel se apaixonaram. Ela deixou de ser dama da noite e passou a trabalhar em uma loja de roupas. Emanuel a tratava como uma princesa, quando iam almoçar juntos no restaurante da esquina, ele levava um guarda-sol para protegê-la dos raios ultravioletas. Era um verdadeiro cavalheiro. A moça adorava ouvir as poesias que ele sabia decoradas. ‘’ Meu pai também é poeta”, dizia ela. E todas as vezes em que Rosário ia dormir, agradecia a Deus por ter colocado Emanuel em sua vida. Finalmente ela estava apaixonada por alguém.

No entanto, Emanuel era viciado em substâncias e todas as vezes que queria usá-las provocava uma briga com Rosário para ficar sozinho e ir cheirar em paz na orla, onde ficavam os playboys da cidade. No outro dia, ele sempre ficava arrependido e abatido, mas Rosário já o amava demais, tentava consolá-lo, lhe servia um café quente e dava todo o apoio que ele precisava, abraçava-o enquanto ele dormia e depois dizia palavras de conforto, falando que ele era forte e iria conseguir largar o vício. Ela cultivava muitas esperanças.

No trabalho, Emanuel foi transferido para uma cidade bonita e fria, e pediu para Rosário morar com ele. Sem pensar muito ela concordou. Estava empolgada. No domingo, foram se despedir de Seu Angenor. Almoçaram a famosa feijoada de Seu Sebastião. Emanuel fez mil planos, disse que agora Rosário poderia estudar enfermagem, pois ele iria dar todo o suporte, além disso até prometeu netos para Seu Angenor. Rosário nunca sentiu tanta felicidade na vida.

Já na segunda-feira ele desistiu, rompeu com Rosário e foi embora sozinho, mal-humorado, grosso, sem dar uma razão exata, sem olhar nos olhos dela. Disse que só namorava mulheres que deram errado na vida e que agora precisava reverter isso. Por que Rosário “deu errado” na vida? O que é “dar errado” na vida? Será que um médico viciado “deu certo” na vida? Ele disse que queria ter tido a sorte de estar com ela antes de ser conhecida por Rosa Moura. No fundo ele sentia ciúmes e inveja de todos os ex-amores da moça ou tinha vergonha dela e do seu passado. Rosário passou meses tentando buscar uma resposta mas não teve êxito.

Ficaram juntos por dez meses intensos. Ela realmente achava que tinha encontrado o grande amor de sua vida. Rosário ficou sem chão. Foi correndo atrás do pai, chorando, e então, Seu Angenor pegou a velha viola e cantou para a filha: ‘’ Preste atenção, querida. De cada amor, tu herdarás só o cinismo. Quando notares, estás à beira do abismo. Abismo que cavaste com teus pés’’. Pai e filha se abraçaram.

Rosário nunca mais teve notícias de Emanuel e não quer ter, nem boa, nem ruim. É como se ele não existisse mais. Que seja feliz! Rosário refez sua vida e seguiu. Seguir é uma palavra bonita.

* Os textos e vídeos dos colunistas não refletem, necessariamente, a opinião do Portal Paraíba Dia a Dia.

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