Estudo do CNJ aponta que 110 mil réus primários por tráfico poderiam ter pena reduzida

Um levantamento inédito feito pelo CNJ (Conselho Nacional de Justiça) aponta que cerca até 110 mil pessoas que foram condenadas por tráfico de drogas não tinham antecedentes criminais e poderiam ter sua pena revista para tráfico privilegiado

Nesta modalidade, o tempo de prisão pode ficar abaixo de cinco anos, o que permite a substituição da detenção por outras medidas. Essa possibilidade é apontada pelo próprio conselho como uma forma de enfrentar a superlotação e as condições degradantes dos presídios brasileiros.

Para ser enquadrado como tráfico privilegiado, a pessoa deve ser réu primário, tem bons antecedentes e não ter participação em outras atividades criminosas ou ligação com o crime organizado.

O relatório do CNJ analisou a situação de 378 mil pessoas condenadas sob a Lei de Drogas, segundo dados de abril de 2024 do Seeu (Sistema Eletrônico de Execuções Unificado). As informações de São Paulo, unidade federativa com a maior população prisional do país, não constam no estudo porque a integração das informações do Judiciário paulista no sistema começou apenas em julho do ano passado.

Desse total, 29% dos presos (110 mil) eram réus primários, e portanto, teoricamente poderiam ter sido condenados a tráfico privilegiado. O estudo não conseguiu analisar se essas pessoas também cumpriam os outros critérios, uma vez que essas informações não constam no sistema.

Por isso, o relatório defende que os casos de tráfico privilegiado sejam identificados e cadastrados desde as audiências de custódia, na entrada no sistema de Justiça, logo após as prisões.

Um caso que ilustra a revisão da pena é o de Raphael Teles. Quando tinha 18 anos, ele levava um amigo na garupa de uma moto após um passeio para uma cachoeira na região de Atibaia (SP). Como não tinha habilitação para conduzir o veículo, o jovem tapou a placa.

No caminho, porém, a dupla se deparou com uma blitz, e passou direto por ela, sem parar. Eles foram então perseguidos por guarda-civis, que prenderam a dupla. O caso ocorreu aconteceu em janeiro de 2023.

Na delegacia, mais de cinco horas depois da abordagem, Raphael foi acusado de ter jogado num matagal durante a perseguição uma sacola com diferentes tipos de drogas, que teria sido recuperada por um dos guardas. A defesa e a família do jovem negam e dizem não ter visto a sacola nem na delegacia.

Preso desde o dia da abordagem, ele foi julgado em 5 de abril daquele ano e condenado a seis anos e quatro meses de prisão por tráfico de drogas, desobediência e lesão corporal (porque um agente se feriu durante a perseguição), mais pagamento de pena de multa. Seu amigo também recebeu uma sentença de seis anos.

O advogado de Raphael entrou com um pedido de habeas corpus, mas ele foi negado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo. Outro recurso foi feito, então, no STF (Supremo Tribunal Federal). A decisão do ministro André Mendonça de julho do ano passado determinou que a condenação fosse alterada para tráfico privilegiado, já que o jovem preenchia os critérios. Ele, então, passou a cumprir a pena em regime aberto.

Apesar disso, sua mãe, a artesã e empreendedora Suzette Teles, 53, diz que a vida de Raphael ainda é prejudicada pela condenação. “Num dos empregos que ele teve depois da penitenciária, acusaram de roubar uma cumbuca de morango. Ele ganhou de uma pessoa e o gerente achou que havia roubado”, afirma ela. O jovem também passou a tomar medicação para enfrentar crises de ansiedade. A defesa pretende, agora, incluir seu caso no indulto presidencial de 2023, para extinguir a pena de multa e sua punibilidade.

A aplicação do tráfico privilegiado ainda não é consensual na Justiça, e essa condenação ainda pode levar à cadeia. Isso apesar do STF ter publicado em 2023 uma súmula vinculante que tornou obrigatória a aplicação do regime aberto e a substituição da prisão por restrição de direitos nesses casos.

Foi o que ocorreu com o dono de uma tabacaria no interior de São Paulo, indiciado em 2019 por tráfico após denúncias feitas à polícia, que revistou sua casa e o estabelecimento. Foram encontrados oito gramas de maconha —seis em casa, dois na loja—, que ele alegou serem de uso pessoal. A polícia também achou R$ 72 e uma balança na tabacaria.

Réu primário, o empresário respondia o processo em liberdade, mas acabou condenado a quatro anos e dois meses de prisão, apesar do enquadramento como tráfico privilegiado, o que o levaria ao regime semiaberto.

Foragido por um ano e meio, ele conseguiu, por meio da defesa, a conversão da pena para um ano e oito meses de serviços comunitários, que cumpriu. Em agosto de 2024, ele teve a punibilidade extinta após ter o benefício do indulto presidencial. Deixou, no entanto, o ramo de tabacaria e o ativismo sobre maconha.

Ao longo do tempo, a aplicação de tráfico privilegiado nos processos relacionados a drogas tem crescido. Em 2014, eram 1.897 processos na modalidade, ante 12.863 sem a condição. O número chegou a 9.263 processos em 2022, ante 33.643 sem a característica. Na distribuição por gênero, a condenação sob a modalidade é de 33% para pessoas do sexo feminino e de 25,2% entre pessoas do sexo masculino, segundo dados de agosto de 2023.

Segundo o coordenador do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas do CNJ, Luís Lanfredi, o tema de drogas é um dos que mais tem impactado o aumento no número de prisões no Brasil.

“A prisão de pessoas que poderiam, em tese, receber outras penas segundo a legislação, como é o caso da pena por tráfico privilegiado, é um dos fatores que tem contribuído com a situação inconstitucional nas prisões brasileiras reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal.”

Dados do boletim do CNJ indicam que, em agosto de 2023, dentre as 370.288 pessoas que respondiam a processos relacionados ao tráfico de drogas, 96.713 (26%) tinham a tipificação de tráfico privilegiado.

O reconhecimento da modalidade privilegiada ainda depende dos outros requisitos de antecedentes, atividade criminosa e relação com crime organizado. O relatório do CNJ cita um estudo do Ipea de 2019 que mostra que as decisões sobre esses critérios muitas vezes são vagas, diz Lanfedi.

“Esse estudo aponta que a principal razão para o afastamento do tráfico privilegiado pelo Judiciário é o fundamento ‘relativamente vago’ de que o réu se dedica a atividades criminosas, com 47,6% das decisões”, afirma. Ainda de acordo com ele, novas diretrizes para para padronizar informações e a tomada de decisão sobre a modalidade estão estão em estudo e devem ser lançadas ainda neste ano.

com Folha de S. Paulo

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